sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Prazer,


O uso da língua, da linguagem, é sem dúvida uma das áreas do conhecimento humano mais fundamentais para se entender, praticar e expandir ao longo da existência.

 

Especialmente o uso da palavra escrita.

 

Esta se dá não por meio de manifestações espontâneas e desmedidas entre interações cotidianas entre indivíduos, mas sim por uma criteriosa seleção de vocábulos com o intuito expresso de manifestar uma ideia que tenha poder de penetração e difusão naquele que lê. O tempo e cuidado envolvidos na produção de um texto escrito diminuem a tolerância ao erro do escritor, e deve, necessariamente, aumentar a expectativa do leitor.

 

No entanto, as maiores criações artísticas da humanidade, obras que tiveram êxito em imprimir com precisão absoluta emoções primitivas e viscerais ao consumidor, foram forjadas, justamente, com o devido tempo e empenho daquele que se dedicou ao propósito de expressar. Não há no mundo forma mais complexa de entrega e interlocução entre dois espíritos humanos.

 

Por isso, escrevo. Me forço a escrever, mesmo que não haja, em momento presente, força ou vontade para tal.

 

Eu sou aquilo que escrevi.

 

Nada que fiz, nenhuma de minhas conquistas será lembrada.

 

Quem eu sou, quem amei, quem desejei, nada disso importa.

 

Eu sou apenas o conjunto de palavras que juntei, ao longo da minha existência, para expressar o que senti, o que vivi, o quanto amei, e o quanto sofri. Sim, este sou eu. Um ninguém que viveu entre outros anônimos em um dado período, em dada circunstância, que engoliu, digeriu e vomitou em papel as mazelas do mundo, que se equilibrou entre o vil e o esplêndido e, como todos os outros, caiu com o peso do mundo.

 

É o que tenho a oferecer. Não julgue me conhecer se não por meus escritos.

 

Não me siga.

 

Siga as minhas palavras.

 

Prazer,

 

.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Trecho de um novo livro! Ainda sem título =]
Estou eu derrotado? Estou lacerado de tal forma que o orgulho seja menor do que a vergonha?! Sejamos honestos, foda-se a vergonha. Você, meu amigo, evoluiu para comer, beber e foder, passar teus genes para frente. Todo resto é ilusão. O terno e a gravata, a camisa passada, o crédito ao médico e o nojo pelo lixeiro. Tua carne é feita do mesmo material fétido que a dele. E não há aqui, por entre essas proposições, demérito à grande máquina que permite à consciência um plano real. Tudo o que você é foi custosamente lapidado para suportar frio, fome e stress no meio de uma selva desgraçada. Você, eu, nós pertencemos a organismos extraordinários. Apenas questiono o desperdício de tudo, visto que o homem moderno conseguiu pôr toda a complexidade e anos de evolução que construíram nosso sistema imunológico em cheque apenas por foder um macaco. E agora o cara não pode foder o amigo, nem você pode foder uma quantidade incalculável de mulheres sem proteção. Mal se pode deitar com uma mulher como você deitaria com um homem. Tudo bem, ok, a rotina enfastiosa é em nome ao progresso. Que progresso? A fibra ótica? Meu amigo, dentro de anos, não décadas, não centenários, nós vamos ter malditos robôs lotando prateleiras ao redor desse mundo inteiro, com o único e exclusivo propósito de te chupar, ou bater uma. Prontos para te dar prazer. O quão distorcido é isso?! A humanidade se perdeu há muito. O scotch melhorou, temos o computador, mas o essencial, a substância que nos define, continua a mesma e não se encaixa com a vida insuportável que nos convencemos a viver. O gozo continua o mesmo; o squirting continua sendo o raro troféu de todo homem (e mulher, diga-se de passagem;) as piores decepções não são com a Siri e sim com a fêmea com quem você trocava fluídos e partilhava medos e ensejos semanas atrás; ah, e você não é especial. E aí?! Todas as perguntas não se resumem a essa?! E aí que o mundo continua girando e eu não consigo te responder. Eu não consigo me responder. Mas não, não há derrota em qualquer emoção humana. Há retrocesso para o progresso, e aprendizado. O mundo dá voltas e termina sempre no mesmo ponto. Por que deveria ser diferente comigo nas poucas e míseras décadas de vida que eu tenho sob a luz do sol?

Felipe Peloggia

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

“... Mal sabe o homem,
Que nasce cego à dor,
Mudo ao horror,
E surdo ao amor,
O excelso fulgor que o calor
De corpo com corpo
Há de ensinar,
Por amor ou por dor,
A perder o porquê do existir,
Existir sem perder o porque,
Ou perder o existir sem porquê.
E tudo isso,
Sem pedir para nascer...”

Felipe Peloggia


Propósito

     Não se sabe até aonde o aceitável limita censuras éticas universais, onde o comportamento perde o exotismo lascivo e passa a exortar o indigno, eviscerando o senso de justo. A filosofia não reconhece o belo e desconhece o feio. Não se sabe o que é o que. O importante é que a trilha de tijolos leva o racional à uma explosão de sentidos: o cheiro irresistível de tinta fresca desbotada, de terra, de sangue que corre no chão.
     A mulher chora por amor ao oposto de si; pelo homem que não é; chora por amor. O homem chora por não calçar os sapatos do pai. O mundo gira em torno do próprio despropósito até que o poeta, coitado, que esperava ter o sentido da vida designado a si por versos em prosa, percebe que o sentido quem dá é ele, e o propósito, nada mais é do que o caminho e caminhar.

Felipe Peloggia

Passado Futuro

Um velho homem,
Em velhos trajes,
Sobre o duro asfalto
Da velha cidade,
Anda solene em passos
Marcados.
Compasso.

Bate o ponteiro intimorato,
O relógio canta
Desbravando tempo novo,
Futuro passado.
O velho sorri
Ao ver o jovem chorar.
Bate o ponteiro, faz o mundo girar.
Mal sabe o jovem
Que o que faz o tempo passar
É o lembrar.

O velho acende o cigarro
Sem saber do último trago
E contempla a bela,
Velha cidade,
Os belos e velhos sapatos,
Os braços cansados
E o calor do amanhecer,
Que tantas vezes testemunhou,
Antes do labor e do andar,
Do construir e conhecer
Cada curva do existir,
De amar sem se arrepender.

O cigarro chega ao fim,
O sol sai do ventre do inconsciente
Por entre prédios imponentes.
Perde-se o chão,
O mundo gira em lentidão.
Os tons de cinza desvanecem
Em desconexa harmonia.
Enquanto chorava o jovem,
O velho ria.

Felipe Peloggia

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Caro Anônimo,

Se não tiver coragem de assinar o próprio texto, não escreva. O anonimato não serve aos fortes, e desvia o descalabro dos fracos. É uma covardia lançar ao mundo expressões desamparadas, órfãs. A humanidade é assim. Ganhamos com isso dezenas de Providências em perfeita harmonia com as falhas de seus criadores, regendo um totalitarismo cego sobre mentes carentes de um grande norte. “Pois então, aqui está seu norte!” certamente disse o primeiro que enxergou, no reflexo de si, Deus. Religião faz mal a você. Esconda-se da sua sombra. Esconda-se sob o papel e tinta e vinho. Escreva seus delírios, e assine. Assuma a autoria do mais vergonhoso, inaceitável e imperscrutável pensar. Transforme-o em arte. Tire das entranhas o que ocupa o pensamento da mais bela, fina e bucólica das damas, e estremece suas coxas quando nem Deus está olhando. Não tenha medo de ser humano, afinal de contas, você é. E acredite, ninguém está olhando. Beba o que estiver na sua frente, ou não beba, mas alimente o desgraçado que grita dentro do seu peito clamando por atenção. Ouça bem o que ele diz, e tente manter o passo. Escreva o mais rápido que puder, não fique para trás. Esqueça do mundo ao seu redor e das ofensas dos que não aceitam sua própria insignificância, visto que o mundo não está nem aí para você. Ouça música, os grandes o esperam. Ludwig Van, Schubert, Sebastian, todos os verdadeiros escultores de massas de ar. Você tem muito a aprender com o que eles têm a dizer. Não pense no que está a fazer, não se pode ser racional ao criar arte. Ela tem que vir do âmago, com vida própria. O seu trabalho é só registrar enquanto o breve e súbito estro absoluto e despótico mantém viva a inspiração, e se odiar quando não conseguir preencher uma linha sem ela. Alimente seu ódio por todas as belas coisas, e faça um contrato com o diabo, depois renegue-o, afaste-o de si, e abrace a vida, a água e o ar que lhe permite respirar por algumas décadas sob a luz do sol. Escreva sobre o tempo que um dia há de roubar-lhe o ultimo suspiro e agradeça a ele a oportunidade de ter vivido. Estude as finas artes, e os botecos e bordéis também. Enxergue a prostituta e o papa como mamíferos, e escreva depois um romance sobre os dois. Não deixe que te enganem com a ilusão de grandeza. Ninguém é grande entre os primatas. Isso não existe. Tente compreender que sua única oportunidade de viver eternamente é por meio das suas palavras. E ninguém vai te julgar por isso. Viva, e assuma autoria pela vida. 

Felipe Peloggia

sábado, 13 de julho de 2013

Tinto (interminado)

    “... Não há resposta para a sua pergunta.”

    “Mas tem de haver um porquê, um motivo, algo”, exclamava com interrogações expressas em seus grandes olhos. Ela tem os olhos da mãe, grandes e expressivos; o cabelo ondulado, revoltoso; a expressão intimorata, a personalidade implacável, a mesma altura, mesmo corpo, a mesma venustidade irrepreensível e incontestável... É como se fossem a mesma pessoa.

    “Precisamente. Amor.”

    “Você mal a conhecia”, respondeu a menina, desconfiada.

    “E?”

    “Como pôde simplesmente clamar por amá-la sem ao menos conhecê-la? Não faz sentido.”

    “E eu não estava certo?”

    “Ela pode ser agora, mas...”

    “Escuta”, respondeu, lentamente pegando um cigarro do bolso esquerdo interno do blazer e acendendo-o em duas tragadas. Sem pressa, posicionou o cigarro sob o cinzeiro à sua frente. O copo de scotch, que a própria Elizabeth havia servido, intocado até então, foi finalmente instrumentado. O girou em cima da mesa, jeitosamente, e deu-lhe um hausto. O líquido deambulou pela parte posterior da sua boca, de maneira que todos os sinuosos acentos deram vida ao seu paladar, até que engoliu. Elizabeth à sua frente, respeitosamente esperando, com olhos vidrados e imóveis. “Eu poderia estar errado e ter feito tudo por nada, ela poderia ter facilmente lacerado o meu coração com as mesmas interrogações com que você me apresenta hoje, afinal de contas”, disse entre um trago no cigarro, “era loucura, certo?”, e não esperou por resposta. “Acontece que no momento era a única coisa que fazia sentido para mim. Eu não sabia se aquilo era amor, tudo o que eu sabia é que eu a queria por perto, não importa como.”

    “E você simplesmente se jogou? Tão fácil assim?”

    Dessa vez ele abriu um sorriso. Mais um trago no cigarro e um hausto no scotch. “Foi simples, isso eu garanto. Mas foi a coisa mais difícil que eu fiz na vida. Eu tinha certeza de que os nossos destinos se separariam ali.”


    “E o que aconteceu?”, perguntou Elizabeth, sorrindo.

    “O que aconteceu foi que sua mãe me surpreendeu. Ela segurou a minha mão quando achei que a largaria.”

    “E se não tivesse acontecido isso?”

    “Então nós não estaríamos aqui agora. Eu provavelmente estaria contando uma história diferente à outra pessoa, não você, Liza. É essa a grande mágica da vida, do amor, da escolha... De maneira alguma minha vida estaria acabada se não desse certo”, mais um longo trago e um gole no whisky. “Eu me reergueria, recomeçaria, e a vida teria seguido outro rumo, com outras preocupações, outros algores, conquistas e pilares.” – Ele notou certo descontento na face da menina. “Mas é claro que esse homem não seria eu. Felizmente, sua mãe foi louca o suficiente para me aguentar.”

     “Você escrevia muito sobre ela?”

     “Tudo o que eu escrevia – e escrevo, é sobre ela, Liza. Você sabe disso.”

     “Eu queria que você não tivesse sido covarde”, disse a menina, com voz de mulher, em tom austero. O cômodo da sala tornou-se negro, as paredes perderam-se entre o opaco e, por alguns segundos, tudo se tornara indistinguível. Apenas a máquina de escrever na grande mesa mantinha-se íntegra, ao lado do copo e do cigarro queimando. O macabro subitamente preencheu o espaço. Elizabeth não estava lá. Na antiga máquina de escrever, havia uma folha branca manchada de um vermelho tinto em contraste com a tinta preta das palavras ali contidas.