terça-feira, 13 de março de 2012

#18

O que diria Pagliacci ao ver um homem enclausurado em sua própria intimidade, com pensamentos fundidos à chamas negras de desespero e insalubridade vil; antes de adentrar em seu grand finale? Talvez veria seu próprio reflexo estagnado na expressão do sujeito, extasiado, desenhado em linhas grosseiras descendendo de sua face, guiando lágrimas secas abaixo. Talvez isso mudaria o curso dos acontecimentos e a comédia não "acabasse" simplesmente.
A verdade é que um homem que é obrigado a engolir as próprias lagrimas em meio ao caos resultante do que foi perpetrado por ele mesmo sente em si o gosto da putrefação moral e pessoal que incidem cada vez mais sob a superfície da realidade em que ele se encontra. É justamente nessa hora, no exato momento onde a humilhação atinge o pico, que o sujeito se reencontra. A humilhação tem um grande poder de aproximar as suas vítimas, de lacerar carne e osso e rearranjar os pedaços de uma consciência doente; seja para encontrar a si mesmo ou entrar em contato com um semelhante.
Entre a opção A ou B, acredito que Pagliacci seguiria seu destino mortal até o fim. Afinal de contas, sem a maquiagem, sem o chapéu e os sapatos enormes, há uma grande possibilidade de que o sujeito reconhecesse o olhar do palhaço que, apesar de sentir exatamente a mesma dor, ainda sentia animo ao alegrar a platéia; vontade essa que havia esmorecido dentro dele há dias, e que com certeza mudaria o rumo do espetáculo da noite também. E enquanto se arrumava, o palhaço se olhava no espelho, um hábito adquirido há não muito. Quanto à comédia, coitada.. Não teria jeito, acabaria ali mesmo, no palco.

#17

   É tão abstêmia, tão adstrita a idéia de liberdade. Não somos livres nem de nós mesmos, das nossas vontades, desejos, segredos... Somos escravos do que somos, escravos das nossas sinapses; seres pensantes, alguns diriam.
   A diferença efusiva entre a auto-interpretação e a realidade crua mascara, de maneira hedonista, o princípio básico da moralidade humana. A antroposofia não tem aonde se sustentar se não nos vazios ignorados pela existência do homem. Não é possível chegar a um estado cônscio sobre qualquer aspecto da moralidade humana com um simples silogismo, sem antes exaurir toda e qualquer característica humana, passiva de emoção. Trabalho de Sísifo esse, afinal de contas, não somos todos psicopatas.
   São olhos castanhos, tristes, verdadeiros, expressivos, penetrantes, quase fulvos, que interpelam qualquer pensamento, qualquer dúvida, que cessam qualquer embriaguez. São esses olhos que geram uma tempestade altissonante e inebriada. Eles não significam nada, mas ignora-los significaria o fim de tudo, todo o sentido da existência, do prazer pelo descontento, todos os anos que esculpiram os olhares de dois indivíduos para o único desígnio de se contemplarem. Olhar dentro de sua íris, porém, consistiria no fim de uma vida, no arrefecimento de memórias marcadas; o preço da consciência absoluta.
   O sofrimento inerente, praticamente inato, é certo. Trata-se de uma experiência serôdia, abordando crimes sem criminosos. O homem continua sendo homem, assim como um charuto as vezes é apenas um charuto.